sábado, 29 de novembro de 2014

toq-bor-neh

É tarde, Maria. Consigo vê-lo nos candeeiros de auto-estrada, banham-me os cortinados por entre o som desgarrado das máquinas no último esforço diário.
 Por esta hora estaríamos entre séries, feitos em trança no sofá, e eu disfarçava os olhos esbugalhados de criança na curiosidade dos teus pés nus. Sempre que me reparavas, fingias não notar que eu fingia não notar, mantendo a beleza rocambolesca de uma função indecifrável. Gostava de subir as mãos pelas tuas calças de andar por casa, fato-treino, o tecido tão elegante como o gesto, dedilhando como numa harpa do tornozelo ao gémeo, dedos como segredos que só amantes sussurram, rota assente na terra do nunca. O fim, não havia realmente fim. 
Era tudo de um idealismo tolo que partilhamos, fruto daquilo que é a nossa sina perpendicular. Sei que com os anos a espontaneidade se iria, como é usual. E acho que teríamos lidado bem com o silêncio de quem se experimenta por várias luas. Seríamos bons a interpretá-lo de uma forma cinematográfica. Encontraríamos o interessante nisso, "o bicho só está lá porque a maçã é boa".
Os meses passariam, e consigo a sensação de tudo aquilo que não volta porque é tudo uma desilusão constante, no sentido em que nos deixamos de enganar sobre o que temos e o que poderíamos ter. Os olhos que se cruzavam com as pessoas na rua deixavam de ter o significado das nossas adolescências, morriam no fugaz momento de sensualidade. O momento em si seria importante, mas mais importante era o regresso. Quantas pessoas não sonham com o regresso que nós teríamos?

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Nos Buracos

Acordo mal descansado,
naquele momento em que o dia se faz dia.
som de fundo irrompe no transe das nuvens.
Dormi por horas na minha casa, a terra minha cama.
No risco de um isqueiro,
no frio de um buraco,
cavado por corpos agora frios.
Assobios.
Noutro tempo diria que eram pássaros,
hoje é metal incandescente.
Alguém fala alto e sinto as chapas no peito,
a sujidade nas mãos.
Há sangue. Não é o dos meus cortes superficiais, é o sangue profundo, de membros,
de alma.
"Dá-me um cigarro". Chega o cigarro amarrotado. Há poucos.
Como se não te deixassem morrer aos poucos.
Inspiro. Expiro.
Não há homens.
Há nostalgia.
Há memória.
Há tudo
menos homens, nos buracos.