É tarde, Maria. Consigo vê-lo nos candeeiros de auto-estrada, banham-me os cortinados por entre o som desgarrado das máquinas no último esforço diário.
Por esta hora estaríamos entre séries, feitos em trança no sofá, e eu disfarçava os olhos esbugalhados de criança na curiosidade dos teus pés nus. Sempre que me reparavas, fingias não notar que eu fingia não notar, mantendo a beleza rocambolesca de uma função indecifrável. Gostava de subir as mãos pelas tuas calças de andar por casa, fato-treino, o tecido tão elegante como o gesto, dedilhando como numa harpa do tornozelo ao gémeo, dedos como segredos que só amantes sussurram, rota assente na terra do nunca. O fim, não havia realmente fim.
Era tudo de um idealismo tolo que partilhamos, fruto daquilo que é a nossa sina perpendicular. Sei que com os anos a espontaneidade se iria, como é usual. E acho que teríamos lidado bem com o silêncio de quem se experimenta por várias luas. Seríamos bons a interpretá-lo de uma forma cinematográfica. Encontraríamos o interessante nisso, "o bicho só está lá porque a maçã é boa".
Os meses passariam, e consigo a sensação de tudo aquilo que não volta porque é tudo uma desilusão constante, no sentido em que nos deixamos de enganar sobre o que temos e o que poderíamos ter. Os olhos que se cruzavam com as pessoas na rua deixavam de ter o significado das nossas adolescências, morriam no fugaz momento de sensualidade. O momento em si seria importante, mas mais importante era o regresso. Quantas pessoas não sonham com o regresso que nós teríamos?