Todos os dias espero por algo de louco em mim, algo que me pare e me assuma por dentro, até nada restar.
Por muito que tenha procurado, através da merda que passei e dos momentos que me tiraram sentimentos do corpo, ainda não encontrei essa faceta específica. O demónio que todos temos, em mim é racional. Ainda que mais nada o seja. E até estou um bocado deprimido com isso. Ter em mim essa desconexão completa do mundo real abafaria os meus sentidos em tempos de culpa e dor. Bater com a cabeça até sangrar, esmurrar o mundo numa parede, contrariar a humanidade num momento de animal é preciso, é, contraditoriamente, humano e natural. Não o ter faz-me sentir mais só do que alguma vez algo fez. Menos humano e mais monstro. Feito de gelo.
Já o vi, nas caras das outras pessoas. É de fogo. É assustador. É a fúria num suspiro, uma surdez irrecuperável e uma cegueira focada em magoar, em destruir o que quer que esteja à frente, por palavras ou gestos. Gestos, sobretudo. Não o ter é não libertar o coágulo que me vai matar mais cedo. Deixá-lo entrar no meu cérebro, nas paredes do meu coração. Detonar uma bomba.
Quando reparo que se aproxima, ele enterra-se e nunca mais o vejo. Cada vez que volta é mais pequeno, menos nocivo. Suspeito que, a dada altura, virá vazio. Nessa altura, já não serei humano. A vida terá passado, e não se poderá chamar vida. Ficarei, para sempre, o cientista que observa os resultados nos ratos de laboratório, sem pensar na perda. Com um objectivo maior. Ou, pelo menos, será essa a justificação que encontrarei para um dia em que eu deixo de ser eu e passo a ser o eu que me era destinado. Um eu que perdeu a ligação a tudo o que é natural. Um ser diferente, pior, do que todos os outros. Sem motivos, motivações, emoções. Sem que nada reste.
Um Buda decaído.
Um anti-homem.
Um anti-animal.
Um anti-natureza.
Um anti.
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