terça-feira, 30 de agosto de 2016

Babel (intro)

"Como minha primeira medida enquanto Rei, declaro que vamos construir uma torre. Uma torre tão alta que chegará aos Jardins Prometidos de Deus, onde nos prostraremos perante a sua omnipotência e viveremos no ócio até ao final dos dias."

Foi um longo caminho, até aqui chegar.
No princípio, éramos quatro. Eu, a minha mulher e os nossos dois filhos.
Quando no meu corpo encontrei o dobro das cicatrizes, decidi que precisávamos de ser mais para sobreviver, e então convenci outros a juntar-se a nós.
Crescemos em número, sem que isso colocasse em perigo a nossa mobilidade enquanto grupo. Vivíamos uma vida nomádica e feliz, até encontrarmos povos mais desenvolvidos, estabelecidos de forma permanente em pedaços de terra a que chamavam seus. Desbastaram florestas e mantinham os perigosos animais afastados dos seus locais de repouso, mas não da ponta das suas lanças. Fizemos um pacto com eles e juntámo-nos à sua pequena, mas vibrante sociedade.
O nosso clã cresceu e tornou-se poderoso. Aprendemos a cultivar. Ensinamos diligentemente a cuidar do gado e montar a cavalo. No final desta adaptação, e com a anexação de outros clãs, tornámo-nos numa grandiosa sociedade que já não tinha como objectivo a sobrevivência apenas. Os problemas diversificaram-se e complexificaram-se. Todos tínhamos opiniões diferentes e, como resultado, problemas internos de difícil resolução que perturbavam nitidamente a vivência diária.
Resolvemos eleger um Rei.

das mãos frias

Escrevo-vos hoje este início, de mãos frias. Trago histórias de guerra, histórias de navios, de piqueniques bizarros e de paixão injectada. Carrego-os comigo mas não as vou partilhar. O que se seguirá é o nosso enredo depois de me colocarem no braço um chip solúvel chamado "V". Nos meus dias, o "V" era uma inovação tecnológica que servia aos espíritos livres. Há várias maneiras de o utilizar, dependendo da vontade de cada um, e é isso que o torna tão procurado.
O seu propósito é o de criar linhas temporais ao seu utilizador, de acordo com aquilo que o mesmo lhe explicita. Digamos que quereria viver num mundo onde tenha cinco filhos, uma esposa, uma conta bancária recheada e um emprego de sonho. O "V" criaria esse universo para meu usufruto. Pode até estipular-se o tempo que desejamos lá viver.
Parece uma invenção perfeita. Os responsáveis pelo seu desenvolvimento publicitaram-na enquanto tal, acrescentando uma opção, somente para os "verdadeiros aventureiros": o modo aleatório. Neste modo, o "V" cria um universo com todas as variáveis ao acaso, com excepção das leis da Física e com o mesmo desenvolvimento tecnológico do nosso Mundo. Podemos viver nele tão pouco como cinco minutos ou tanto como 80 anos, é uma incógnita. Há três maneiras de escapar deste ciclo de vidas ininterrupto: Desligar o modo aleatório, regressar ao universo de origem fora deste modo ou a morte.
Eu sou um destes "verdadeiros aventureiros". Eu liguei o modo aleatório. O meu "V" avariou. Estou preso.

v2

Tenho ** anos. Atravesso a rua e toda a gente fala disto. Milhares de pessoas estão à porta do sitio para onde me dirijo. Uns protestam sob pretextos religiosos, acerca de como a vida é tão preciosa e única que apenas o pensamento de criar uma alternativa é herético. Outros imploram por uma oportunidade de se submeter à experiência, sem meios para a pagar. Os opostos tocam-se no seu entusiasmo. O sentimento é fervilhante e descomposto, mas revitalizante. Como uma orgia da res pública. Não acho que tenha alguma vez visto tanta gente interessada no mesmo. Ou tanta gente junta, sequer. A paixão é desmesurada e surgem pequenos incidentes por todo o lado, a polícia não consegue saná-los a todos.
Na realidade, eu também não venho de uma família com grandes meios. O meu pai tinha um seguro de vida particularmente bom. Morreu o ano passado. Os seus últimos suspiros opiáceos cantavam "Que vida, que viagem." Morreu feliz. Morreu longe daqui. 
Comecei a perguntar-me se vou sentir o mesmo, quando chegar a minha vez. Se vou fazer tudo bem, se vou errar pelo caminho, se vou ter uma vida desgarrada de luta, se vou encontrar pousio ou se ando à deriva. Eu não sei sequer o que quero ver. Sei que vê-lo, a ele, durante os três meses de tratamento, não é vida. Segurar-lhe os ombros para que vomite digno, carregá-lo nos braços até à cama e dar-lhe religiosamente o café por uma palhinha, cuidar com receio de partir; não, não é vida.
A vida é o que fizer dela. Mas, então...
E se a fizer vezes sem conta?

v

As imagens estão um bocado turvas na minha mente, mas como já te tinha dito, a ideia chegou-me num sonho. Parece surreal, eu sei. No entanto, a maioria das ideias que tenho chegam assim, levemente, em imagens desconexas. Quando sonho assim, relembro-me do porquê de ser como sou. Por que razão me sinto tão fora do circo que são as relações interpessoais e as coisas que todos deveríamos sentir ou deixar de sentir uns pelos outros. Tão fora das convenções sociais que me dizem que não posso olhar demasiado tempo para as pessoas no metro, enquanto as escrevo na minha cabeça, ou ficar apenas especado no café, a apreciar um pássaro que desvenda os caminhos da fome e traz migalhas de volta ao ninho. Sonhos que me dizem, claramente: "M*****, não sei se é errado ou não, mas há algo de diferente a passar-se no teu cérebro. Algo que te promove a empatia, o embaraço, mas também a preguiça e a apatia. O apreço das pequenas coisas, as fotografias mentais, ou até algo tão simples como saberes as pessoas sem que elas te previnam do caos que as governa". 
Estou a divagar. Desculpa.
Passemos ao sonho.
Imagina que sou um vulto. E como vulto, sou tudo e nada. Como vulto, atravesso o ar frio da noite, os corpos das pessoas e sou as suas emoções, o bater desconcertado do seu coração, os passeios escorregadios e os candeeiros que por falta de manutenção estremecem violentamente e reluzem em código morse. Como vulto, avisto uma fachada industrial habitacional, com grossos cabos em metal a revesti-la, num arranha-céus que o futuro construiu. No andar mais alto, uma janela panorâmica, circular, desesperadamente enorme, como se quem habitasse nesse apartamento fosse um eremita privilegiado, e olhasse para os humanos lá em baixo, na sua busca diária por algo que dê sentido às suas pobres vidas.
Aproximo-me a uma velocidade vertiginosa dessa janela, os contornos passam a figuras perceptíveis, e o que vejo é apenas um homem, ar cansado, a acolher a vista. Ele veste um fato preto, de fino corte, e tem as mãos nos bolsos das calças. A camisa é branca, desfraldada, como quem voltou estafado de um dia de trabalho. Ele não dorme uma noite decente desde que se lembra. Atrás dele, uma mulher anda em círculos, completamente lívida de raiva, atirando com pequenos objectos por todo o lado, amontoando roupa numa mala de viagem. Ele nunca olha para trás.
Eu chego à janela, do lado de fora, os olhos desse homem encaram-me. Os lábios rompem o silêncio e ele esboça uma frase: "Se é assim tão mau, vai--".
E sou ele, agora. E páro a frase a meio. 
"Desculpa, não é nada isto."
"Desculpa."
No segundo em que me torno nele, apercebo-me de quem é ela. Da falta que lhe faz. Da maneira como as suas narinas se abrem quando se chateia. Do esgar que antecede uma gargalhada histérica.
E apercebo-me de quem sou. Das 12 horas por dia que passo, no sítio onde as passo, para podermos ter aquele canto para nós. Do quão vazio ele se torna se ela acabar de arrumar aquela mala. E do quão patética seria a minha existência se tivesse terminado aquela frase.