terça-feira, 30 de agosto de 2016

v2

Tenho ** anos. Atravesso a rua e toda a gente fala disto. Milhares de pessoas estão à porta do sitio para onde me dirijo. Uns protestam sob pretextos religiosos, acerca de como a vida é tão preciosa e única que apenas o pensamento de criar uma alternativa é herético. Outros imploram por uma oportunidade de se submeter à experiência, sem meios para a pagar. Os opostos tocam-se no seu entusiasmo. O sentimento é fervilhante e descomposto, mas revitalizante. Como uma orgia da res pública. Não acho que tenha alguma vez visto tanta gente interessada no mesmo. Ou tanta gente junta, sequer. A paixão é desmesurada e surgem pequenos incidentes por todo o lado, a polícia não consegue saná-los a todos.
Na realidade, eu também não venho de uma família com grandes meios. O meu pai tinha um seguro de vida particularmente bom. Morreu o ano passado. Os seus últimos suspiros opiáceos cantavam "Que vida, que viagem." Morreu feliz. Morreu longe daqui. 
Comecei a perguntar-me se vou sentir o mesmo, quando chegar a minha vez. Se vou fazer tudo bem, se vou errar pelo caminho, se vou ter uma vida desgarrada de luta, se vou encontrar pousio ou se ando à deriva. Eu não sei sequer o que quero ver. Sei que vê-lo, a ele, durante os três meses de tratamento, não é vida. Segurar-lhe os ombros para que vomite digno, carregá-lo nos braços até à cama e dar-lhe religiosamente o café por uma palhinha, cuidar com receio de partir; não, não é vida.
A vida é o que fizer dela. Mas, então...
E se a fizer vezes sem conta?

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