sábado, 28 de fevereiro de 2015

conversas moléculares ou a tautologia do que é exprimir-se

eu vejo um cubo
e digo-te que é um cubo,
com os teus braços esvoaçantes procuras as arestas que o limitam,
olhos no céu, de palmas viradas para cima.
E tremes. Tremes o teu mundo contigo, contido
na limitação do que é exprimir-se,
exprimir o sítio onde estás,
que é amarelo e rosa forte ao mesmo tempo,
cores quentes pejadas de parco laço a uni-las.
E não posso dizer que é mentira,
nem que há cinco segundos falávamos do cubo,
senão desabas no infinito
e um grito mudo na tua cabeça coloca o ponto final
da conversa que ainda não começaste.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

hang on to your id

perguntaste-me como lidar com areias movediças
e eu respondi que serias a cicatriz mais bela do meu corpo já embalsamado,
que a ideia da pele morta se estranha
antes de ser acolhida com a promessa de não abrir a porta a estranhos,
que há orgulho em ser o último trinco a ceder
neste dominó de cataclismos,
que há arte no volver de poemas em crónicas sujas,
mesmo que sejam unidos pelas ancas,
nunca de frente um para o outro.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

iron lung

bastaram dois engodos de língua para me derreteres na tua boca. nada foi melhor. nada é melhor.
nada é tão livre como cair dentro de ti, e esperar os teus braços. as tuas pernas à minha volta.
somos felizes no dia ocupado, no dia triste,  no dia belo. no dia em que dos nossos lábios se esgueira a boa noite. somos felizes com o toque doce no ombro que nos envolve de manhã e no abraço dócil dos lençóis, quando nos adormecemos a quilómetros. descobrimos a pólvora. usamo-la como fogo de artifício e voamos perto do sol. como podemos virar as costas? como podemos viver sem respirar? somo-nos cúmplices, estranhos, estrangeiros e amantes, tudo de uma vez. somo-nos nós, gemo-to dentro do ouvido e da boca.
somos tão bem...

hoje volto aqui para te mostrar que somos feitos do pó das estrelas e que nada desaparece. Por isso sai, vai à rua, desliza na calçada...
hoje o dia é teu, deixa ser verde.

pierrot

Não consigo deixar de imaginar que estou outra vez naquele recanto de uma quinta, suores ansiosos repelem o brilho do sol e a doce brisa, no melhor dia de Agosto.
São códigos que não percebo, esses do toque amargo; não sei o que é deslizar os dedos para além da pureza incauta, não sei, peço desculpa, não quero saber. Não me obrigues. É Agosto, por favor não.
Amarra-me o peso do silêncio. Acabaste e puseste-me os dedos nos lábios. Olhaste-me do mais doce que os monstros conseguem. Doce possessivo. Vergonha nos dedos. Senti-os tremer.
Voltei a casa e tudo soava a asfalto na bicicleta. A ocasional borracha que se debate com o piso. Tempo de deixar estes minutos debaixo de um cobertor.
...
..
.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

smog

Tenho um amigo, na realidade um amigo que por dissabores se tornou relâmpago, que disfarça as loucuras por baixo de nenúfares em flor, ou mais até como pato num lago. Tudo calmo à superfície, enquanto as patas desenvolvem um festival frenético, capaz de separar moléculas e reverter água para hidrogénio.
Ele mente. Copiosa e fantasticamente. Quando outros nele vêem apenas uma sequência aleatória de factos comprovadamente passíveis de rejeição, eu vejo a mente de uma criança que ainda o é, de vívida imaginação e detalhes que trazem lágrimas aos olhos. A sua mãe é professora, contudo não há um livro à vista nas suas estantes em casa. O pai era agente de uma qualquer força armada, mas trabalha num aeroporto em Bruxelas. Este tipo de coisa.
Não o via há dois meses. Não lhe falava longamente há ano e tal.
Hoje redescobri o susto que é crescer desamparado. Tenho medo, mãe. Envolve os teus braços nesta fraca estrutura óssea até quebrar. Tolda-me os sentidos para não me esconder do mundo, e oferece-me a imagem dos adultos que têm de sorrir para que os filhos anseiem o pagamento de impostos.
Deixaste-me em 2007 e nunca esteve tanto frio em casa.


count your coins and throw them over my shoulder

"não quero"
e dois comprimidos (que são vinte, mas shhh) deslizam
na garganta,
sabor a frutos exóticos e
a lar longe de lar: o mundo afogado,
confortos vazios.
Estou a 9 milimetros de mim, olho
de cima. Afago a minha cara:
"mereces."
De repente, pânico.
O horror, o meu pai espojado
sobre o mogno frio
da minha caixa num lugar
sem cor,
o meu irmão,
olhar louco,
o desgaste,
a imagem de si comigo ao colo,
a minha mãe - tão longe daqui "o meu pai?",
pergunta repetida.

Volto de susto,
agarro o maxilar que afagava.

Vómito.
Azia.
Dorme, Miguel.
Amanhã é dia.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

#354

a outra voz que mora aqui enuncia estes vocábulos, claramente:

não tenho espaço na aorta - ou
no sistema nervoso central, por falar nisso -
para o arrepio que brota da nuca
como resina de uma árvore madura.

a minha responde:

não tenho espaço na aorta - ou 
no sistema nervoso central, por falar nisso -
para a dormência das minhas pernas,
nem para virar as costas ao fogo
quando é tão bom arder.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

#353

fazer as coisas desta forma não vale. trazer ânimo aos ramos desfeitos na lareira, enganando a desidratação com o álcool. não vale se não for a sério.
não nascemos todos para deixar linhas que aquecem por dentro. às vezes uma ou outra despontam do horizonte desolado, mas continua a não haver água e a sentir-se o cheiro a sal. continua a segurança de que sou o que sou e pouco há a fazer acerca disso. de que os dias passam como agulhas.
é verborreia,
não preciso de balões a ilustrar as mentes
de personagens desenhadas na minha cabeça.
Nem a que sou no meu quarto,
Nem a que invento em autocarros.

São heterónimos do anonimato,
só heterónimos do anonimato,
são o pudor das causas perdidas.

não quero perder pedaços
de mim
para que desvaneçam em duas metades de um só corpo.