terça-feira, 30 de agosto de 2016

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As imagens estão um bocado turvas na minha mente, mas como já te tinha dito, a ideia chegou-me num sonho. Parece surreal, eu sei. No entanto, a maioria das ideias que tenho chegam assim, levemente, em imagens desconexas. Quando sonho assim, relembro-me do porquê de ser como sou. Por que razão me sinto tão fora do circo que são as relações interpessoais e as coisas que todos deveríamos sentir ou deixar de sentir uns pelos outros. Tão fora das convenções sociais que me dizem que não posso olhar demasiado tempo para as pessoas no metro, enquanto as escrevo na minha cabeça, ou ficar apenas especado no café, a apreciar um pássaro que desvenda os caminhos da fome e traz migalhas de volta ao ninho. Sonhos que me dizem, claramente: "M*****, não sei se é errado ou não, mas há algo de diferente a passar-se no teu cérebro. Algo que te promove a empatia, o embaraço, mas também a preguiça e a apatia. O apreço das pequenas coisas, as fotografias mentais, ou até algo tão simples como saberes as pessoas sem que elas te previnam do caos que as governa". 
Estou a divagar. Desculpa.
Passemos ao sonho.
Imagina que sou um vulto. E como vulto, sou tudo e nada. Como vulto, atravesso o ar frio da noite, os corpos das pessoas e sou as suas emoções, o bater desconcertado do seu coração, os passeios escorregadios e os candeeiros que por falta de manutenção estremecem violentamente e reluzem em código morse. Como vulto, avisto uma fachada industrial habitacional, com grossos cabos em metal a revesti-la, num arranha-céus que o futuro construiu. No andar mais alto, uma janela panorâmica, circular, desesperadamente enorme, como se quem habitasse nesse apartamento fosse um eremita privilegiado, e olhasse para os humanos lá em baixo, na sua busca diária por algo que dê sentido às suas pobres vidas.
Aproximo-me a uma velocidade vertiginosa dessa janela, os contornos passam a figuras perceptíveis, e o que vejo é apenas um homem, ar cansado, a acolher a vista. Ele veste um fato preto, de fino corte, e tem as mãos nos bolsos das calças. A camisa é branca, desfraldada, como quem voltou estafado de um dia de trabalho. Ele não dorme uma noite decente desde que se lembra. Atrás dele, uma mulher anda em círculos, completamente lívida de raiva, atirando com pequenos objectos por todo o lado, amontoando roupa numa mala de viagem. Ele nunca olha para trás.
Eu chego à janela, do lado de fora, os olhos desse homem encaram-me. Os lábios rompem o silêncio e ele esboça uma frase: "Se é assim tão mau, vai--".
E sou ele, agora. E páro a frase a meio. 
"Desculpa, não é nada isto."
"Desculpa."
No segundo em que me torno nele, apercebo-me de quem é ela. Da falta que lhe faz. Da maneira como as suas narinas se abrem quando se chateia. Do esgar que antecede uma gargalhada histérica.
E apercebo-me de quem sou. Das 12 horas por dia que passo, no sítio onde as passo, para podermos ter aquele canto para nós. Do quão vazio ele se torna se ela acabar de arrumar aquela mala. E do quão patética seria a minha existência se tivesse terminado aquela frase.

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