quinta-feira, 7 de maio de 2015

tentemos então ver a coisa ao contrário


O meu pai disse-me, um dia: "quase que os imagino. Quase, nada. Tenho as imagens claras na minha cabeça. A chegada de uma família de quatro a uma Paris tão diferente, era um pobre El Dorado, pertencia aos pobres portugueses, de pobres origens, almejando uma riqueza que nós hoje sabemos também ser invariavelmente pobre.
As vozes ressoam da Gare. Eles falam um dialecto estranho. Algumas palavras rasgam o Português no ar, a azáfama de um e de todos, é também uma cidade em movimento, para alguns a primeira que viram, mas nunca a última que desejam ver. O seu coração é português, visível nitidamente em tudo o que carregam. Em toda a sua aparência, todo o seu olhar de espanto, angústia, desespero. Mas sempre algum fogo.
Nos primeiros passos dados fora da carruagem, o pai lidera o caminho como um piloto sem portulano, perdido em Paris como os seus antepassados no Atlântico, Índico e Pacífico, as malas contém uma vida familiar em si e pesam nos seus ombros. A mãe de dois tem a cara trancada a cadeado, um filho, demasiado novo para andar, adorna-lhe o ombro com o rosto, esconde-se e lança ocasionalmente um olhar assustado para o de sua mãe, olhos abertos, boca entreaberta, sem se atrever a falar com o marido, quer porque não há espaço para tal desafio ou apenas porque o Português que da sua boca saísse iria certamente suscitar olhares.
O segundo filho vem arrastado pelo braço, em constante desequilíbrio e pressa: são seis aninhos, tudo é novo. Na mão que a mãe não agarra, segura um garrafão cheio, mais cheio do que o suposto, de vinho. O peso é enorme. Foge-lhe aos poucos da infante mão até cair com estrondo no piso, quase paralizando a gare durante um eterno décimo de segundo. O pai larga tudo, a mãe larga o filho, as duas faces adultas enrubescem. Cinquenta pensamentos atravessam a mente do pai, a vergonha, o embaraço, "o português"; todos estes, mas o mais forte de todos: a única lembrança vívida que poderia saborear da sua terra natal, o vinho, agora escorre no chão, faz parte de França. a portugalidade findou. Uma chapada voa sem pensar, atinge a cara do filho, que não tem tempo de se aperceber, sentindo apenas o calor a invadi-lo enquanto o pai arrasta o corpo dormente pelo erro e pela agressão, a mão na cara agora, as lágrimas silenciosamente escorrem rosto abaixo na mãe e filhos, o pai dono de um arrependimento acerca do qual nunca se desculpará. A vida é a vida e não pára nunca. Leva-se nos cornos e segue-se em frente. Se se pára ou volta atrás, deixa de haver caminho para qualquer um dos lados. É assim que é.
E a gare, a Gare de Austerlitz, viu milhares de casos de todos estes sentimentos, é rica em cicatrizes, vinho e lágrimas de portugueses.
E todos os portugueses choram a sua terra perdidos no barulho de uma fábrica, em cada sorriso que dirigem ao patrão"
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4 comentários:

  1. Não trabalhando numa fábrica, ou sofrendo o que estes portugueses sofreram, ainda assim, longe de casa, sou também uma emigrante, como tal, este teu post tocou-me profundamente.
    O José Mário Branco muito bem escolhido!

    um beijinho

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  2. isso é que para que dias mesmo?

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  3. enganei-me nas tags, era só o maio maduro maio:) desculpa

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  4. S, fico contente:) é bom saber que consegui capturar algo. beijinho

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